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quarta-feira, 25 de março de 2015
segunda-feira, 23 de maio de 2011
Missão e espiritualidade
Carlos Queiroz
INTRODUÇÃO
Sempre que se fala de espiritualidade pressupõe-se uma experiência humana exclusiva no campo religioso e subjetivo da fé, alienada às demais experiências da vida. No cristianismo, quando se aborda sobre missão a ênfase recai no ativismo enquanto serviço prestado ao próximo, seja pela proclamação do evangelho, ou pelas obras de misericórdia e justiça. Nesta reflexão estamos considerando espiritualidade e missão como eixos paralelos do mandamento principal das Escrituras: "Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo...". Assim, amar a Deus é uma missão espiritual, do mesmo modo que, amar ao próximo é uma espiritualidade missionária. Estas duas manifestações cristãs evidenciam-se de forma interativa e interdependente. Por conta dessa interação afirmamos que a espiritualidade cristã precisa sempre encontrar o seu caminho devocional em missão ao próximo. No catolicismo, a missa é o evento em que o adorador tendo encontrado-se com Deus no espaço sagrado, sai dai em missão ao mundo. Desse modo, a espiritualidade pode ser entendida como uma experiência humana no campo da fé e missão como uma resposta ética dessa mesma fé.
Na narrativa sobre a tentação de Jesus, tanto Mateus quanto Lucas fazem referência a importância do pão, quanto da Palavra de Deus: “Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que procede da boca de Deus”. Na oração Dominical, Jesus ensina aos seus discípulos a orarem ao "Pai nosso celestial", pelo "pão nosso de cada dia". Os textos fazem referência à sobrevivência física (pão) e a experiência transcendente (Palavra da boca de Deus e Pai nosso). O pão é um bem compartilhado ou acumulado – portanto, fermentado de implicações sociais, econômicas e políticas; da mesma forma, que a Palavra procedente da boca de Deus e Pai nosso possuem implicações religiosas. Portanto, as relações políticas, econômicas e religiosas da sociedade em que estamos inseridos anunciam ou denunciam a nossa espiritualidade e missão.
Apenas para efeito de exposição das idéias, vamos discorrer sobre missão e espiritualidade em categorias separadas, mas entendendo que ambas confluem-se na vida e natureza da igreja de Jesus Cristo.
Pretendo concluir esta parte introdutória, com uma frase que pode resumir o enfoque como abordaremos o nosso tema durante esses dias: A falta de pão na mesa do pobre pode ser uma denuncia da falta de espiritualidade no altar dos cristãos. Com esta frase desejo enfatizar a idéia de que missão e espiritualidade, no evangelho de Jesus Cristo, confluem-se nos espaços em que há sinais da sobre-vivência humana: devoção e pão de cada dia. Todavia, preciso também, explicitar dois reducionismos que a frase pode gerar:
a) Que a missão se torne um serviço voltado somente para o problema da falta de pão para os pobres, e
b) Que a espiritualidade se torne uma tarefa exclusiva em torno do altar.
Mais grave do que a dicotomia mencionada acima, é a constatação de que o cristianismo brasileiro, mesmo que, numericamente significativo, não tenha conseguido atender com respons-habilidade as demandas de nossa sociedade.
No contexto brasileiro há várias práticas espirituais nas mais diversas comunidades cristãs, que evidenciam distorções e limitações na atividade missionária da igreja de Jesus Cristo. Além dos pentecostais e neo-pentecostais, o protestantismo histórico tem passado por uma de suas transições mais comprometedoras entre a sua identidade histórica e a necessidade de contextualização. Na primeira parte de nossa reflexão estou considerando a missão como um desdobramento de práticas espirituais expostas nas vitrines no cenário religioso brasileiro. Em seguida estabeleço três eixos básicos de sustentação e balizamento para a espiritualidade e missão da igreja: fé, amor e graça.
Por enquanto, olhemos algumas práticas de espiritualidade na vitrine.
1. PRÁTICAS DE ESPIRITUALIDADE NA VITRINE
1.1. ESPIRITUALIDADE E FETICHI
Têm-se associado ao cristianismo evangélico brasileiro elementos estranhos, tanto à sua herança judaico-cristã, como à sua configuração histórica. Nunca fez parte de nossas crenças a fé no poder e mediação dos objetos - seja para fazer o bem, seja para produzir o mal. Sou filho da geração que nunca acreditou, por exemplo, no poder dos objetos usados nos “despachos”. Que tais objetos tivessem poder capaz de gerar qualquer resultado sobre alguém - nem para o bem, nem para o mal. Qual o argumento, no passado, usado exclusivamente nos espaços de “fetichi religioso popular” para manter pânico e dependência nos seus fregueses? Aqui surge o “sacerdote mágico” argumentando com o cliente que alguém lhe fez um despacho, ou que um encosto o persegue. Há amarras misteriosas, que somente ele – “sacerdote mágico”, pelo poder da magia, pode "mover o sobrenatural" e desatar os nós na vida do cliente. A mesma lógica fetichisou os arraias evangélicos, que passaram a confiar no poder dos objetos, nas frases mágicas, nos demônios que habitam em máscaras, roupas e desenhos. Do ponto de vista bíblico, os demônios habitaram em pessoas, e no máximo, não como regra, mas como exceção, numa única ocasião invadiram, com a permissão de Jesus, uma manada de porcos.
Têm-se associado ao cristianismo evangélico brasileiro elementos estranhos, tanto à sua herança judaico-cristã, como à sua configuração histórica. Nunca fez parte de nossas crenças a fé no poder e mediação dos objetos - seja para fazer o bem, seja para produzir o mal. Sou filho da geração que nunca acreditou, por exemplo, no poder dos objetos usados nos “despachos”. Que tais objetos tivessem poder capaz de gerar qualquer resultado sobre alguém - nem para o bem, nem para o mal. Qual o argumento, no passado, usado exclusivamente nos espaços de “fetichi religioso popular” para manter pânico e dependência nos seus fregueses? Aqui surge o “sacerdote mágico” argumentando com o cliente que alguém lhe fez um despacho, ou que um encosto o persegue. Há amarras misteriosas, que somente ele – “sacerdote mágico”, pelo poder da magia, pode "mover o sobrenatural" e desatar os nós na vida do cliente. A mesma lógica fetichisou os arraias evangélicos, que passaram a confiar no poder dos objetos, nas frases mágicas, nos demônios que habitam em máscaras, roupas e desenhos. Do ponto de vista bíblico, os demônios habitaram em pessoas, e no máximo, não como regra, mas como exceção, numa única ocasião invadiram, com a permissão de Jesus, uma manada de porcos.
De fato o cristianismo brasileiro passa por um processo de sincretismo interno e externo. Basta observarmos que do ponto de vista da liturgia o catolicismo pentecostalizou-se, enquanto que, do ponto de vista da magia, o protestantismo catolicizou-se ou umbandicizou-se. Sem emitir um juízo de valor no que diz respeito às negociações dos símbolos e expressões religiosas, estou tão somente apontando para a possibilidade de que, diante de uma espiritualidade fetichizada, superficial e alienada do pão de cada dia para todos, a missão tende a ser uma interferência exclusiva pela via do milagre, em que o intermediário é o mais beneficiado..
1.2. ESPIRITUALIDADE QUE SUPERVALORIZA O ESTÉTICO EM DETRIMENTO DO ÉTICO
Entre os programas de televisão que dão ibop, encontram-se os programas das "mascaradas" - jovens bonitas com o corpo quase 100% descoberto e uma máscara encobrindo o belo da fisionomia. Os olhos, a face formam uma parte do corpo por onde fluem as intenções, os desejos mais íntimos, os sentimentos – expressões no campo da ética; porém agora, escondidos por máscaras. No outro lado o corpo, com suas expressões estéticas, exposto na vitrine.
Não estou falando de moralismo. Refiro-me a esse fenômeno, em que as aparências cosméticas e teatrais na espiritualidade da igreja travestiram-se de uma estética visual de tal forma tentadora, que mascara a necessidade de uma religião mais ética e comprometida com a vida. Tiago ressalta: "A religião pura e verdadeira é visitar os órfãos e as viúvas e se manter puro..." Aqui encontramos equilíbrio entre o ético e o estético. Manter-se puro – pode estar relacionado à imagem pessoal e coletiva diante da sociedade. Uma boa imagem pública é uma questão estética. Preservar uma liturgia harmoniosamente adequada para comunicar os elementos da graça se faz necessário, mas pode se tornar apenas estético. Cuidar dos órfãos e das viúvas (pessoas à margem da sociedade) é mais ético do que apenas estético. Assim, manter a coerência da mensagem do Evangelho de Jesus Cristo, amar o próximo como Cristo nos amou, ser íntegro e transparente, ser uma noiva sem máscaras - é ético.
A espiritualidade estética é meramente ritualista, legalista e meritória; predispondo seus praticantes a uma missão que gira em torno da publicidade pessoal.
1.3. ESPIRITUALIDADE COMO FENÔMENO DE MERCADO
O cristianismo brasileiro passa por manifestações, que não se sabe de fato, se é um fenômeno de mercado com elementos da religiosidade popular ou se um fenômeno religioso que utiliza os instrumentos de mercado. Estruturar uma igreja passou a ser um grande negócio de mercado. Não se sabe se os sacerdotes dos nossos tempos são atraídos por vocação ou tentação.
Há uma propaganda de motocicleta que ilustra bem essa promiscuidade entre religião e mercado. Aparecem três jovens com vestimentas sacerdotais (batina e colarinho clerical), com uma frase: "Se a igreja usa o marketing, o marketing usa a igreja". Em seguida começam a cantar usando uma coreografia bastante comum nos espaços religiosos dos nossos dias. Usar o marketing como instrumento de propagação ou a coreografia é irrelevante na questão em referência. Estamos buscando discernir se o fenômeno a priori é de fato religioso; ou se o ídolo de marcado, além de se utilizar de todos os meios materiais para manutenção do sistema, consegue também coptar uma "espiritualidade neo-liberal" em beneficio do status quo de seus sacerdotes. Neste caso, mais do que nas situações de omissão, germina-se uma "espiritualidade” com toda a lógica de mercado, cuja missão é pragmática e materialista.
1.4. ESPIRITUALIDADE NUM CRISTIANISMO PAGANIZADO
A espiritualidade no paganismo é identificada especialmente na forma em que se relacionam os devotos e a divindade. No paganismo o devoto tem controle e domínio sobre o ídolo; até porque, o ídolo, em si mesmo, é apenas a materialização simbólica das demandas religiosas, ou no máximo, uma projeção dos desejos e aspirações humanas, atendidas supostamente pela magia no campo da fé. Portanto, o ídolo é uma projeção sem inteligência e vontade próprias. Não há nenhuma expressão de vida na divindade pagã. Por causa disso, o devoto assume total controle sobre as tarefas e favores a serem "executados" pelo ídolo. O cliente, no paganismo, determina e pressupõe manipular seu ídolo com promessas, oferendas, frases mágicas, etc.. O cliente determina o que deseja. Aproxima-se do "mágico" e diz qual o bem ou o mal que deve ser executado pela divindade. Seja qual for o desejo do cliente, a tarefa da divindade é somente a de obedecer ao cliente, através do manuseio de objetos sagrados ou frases mágicas. Nesse cenário religioso o "sacerdote" (agente intermediário) é maior do que o santo.
No paganismo, a divindade sem inteligência, vontade própria, sem projeto algum, existe apenas como expressão da esperteza dos sacerdotes do sistema ou dos desejos e aspirações dos devotos; portanto, como imagens ou ilusões invisíveis dos clientes. Assim, numa relação pagã, não se precisa orar: "seja feita a tua vontade" - o ídolo não tem vontade, somente o cliente.
Nas narrativas dos evangelistas do Novo Testamento Jesus reconhece um Deus autônomo, revestido de sabedoria e inteligência. Pensa por si mesmo, tem vontade própria e soberana, e seus adoradores devem segui-lo por obediência e fé.
Enquanto no paganismo os devotos estabelecem as regras na relação; no Evangelho, Jesus Cristo define as alianças e as formas a serem obedecidas. Ele mesmo orou reconhecendo a soberania e autonomia de Deus - fez referência ao Pai que está nos céus (Mt. 6.9), confessou sua total submissão à vontade de Deus, referiu-se ao Reino de Deus que deve ser acolhido (Mt. 6.10). Assim, Deus tem o controle de tudo e não os adoradores. O Deus sobrenatural move todas as coisas, e não o contrário.
Quando escuto as orações em vários cultos cristãos, incluindo os evangélicos, fico desconfiando que há uma invasão de paganismo em nossas liturgias, cânticos, orações e confissões.
Numa espiritualidade em que o devoto tem o controle e "soberania" das coisas, tanto a divindade quanto o próximo são apenas objetos na transação mercantilista do cliente. Em caso de alguma missão (e, aqui a missão se reduz a proselitismo e filantropia), esta existe prioritariamente como meio de promoção dos sacerdotes e de suas respectivas instituições.
1.5. ESPIRITUALIDADE ESOTÉRICA SENSITIVA
Estamos denominando de espiritualidade esotérica sensitiva aquela que é caracterizada pelo exercício interior e individualista, fechado a grupos restritos e herméticos, percebidos entre si como pessoas dotadas de poderes místicos ou “energia positiva”.
Sensitivo pela priorização da experiência em detrimento da participação inteligente da revelação decodificavel. Sem dúvida alguma, o Evangelho é profundamente arraigado no campo dos sentimentos; todavia, somente sentir sem discernimento e implicações comunitárias, pode conduzir o cristão ao isolamento e ao fanatismo desumano e inconseqüente.
Levando-se em consideração ao apelo pela experiência pessoal, há no esoterismo uma grande semelhança com o evangelho de Jesus Cristo. O cristianismo tem vários aspectos que o torna intimo, pessoal e sensorial. Nas narrativas bíblicas encontram-se experiências místicas, subjetivas -, acontecem no campo da alma; mas não são resultantes da habilidade interior de se transcender ao racional. No evangelho as experiências pessoais são acima de tudo ex-otéricas – acessível a todos, simples e sem burocracia ou tecnicismo.
Os modelos esotéricos tendem a privilegiar os gurus, que por sua vez individualizam-se, isolam-se da comunidade. Aqui os espirituais são reconhecidos por níveis superiores ou inferiores. Os "pós-iniciados" passam a ser identificados como indivíduos especiais, super-espirituais, pessoas dotadas de capacidades espetaculares. Vale neste caso, a experiência, a capacidade de encontrar-se com o "além", o poder que "seres humanos evoluídos" adquirem para controlar “energias” ou serem influenciados por estas.
Se numa comunidade cristã, as pessoas estão dando mais ênfase a experiência espiritual que isola, discrimina os de fora, põe os "espirituais" em pedestais superiores, difíceis de serem alcançados por outros seres humanos, é bem provável, que estejamos diante, mais de uma espiritualidade esotérica - sensitiva, do que diante do modelo proposto por Jesus Cristo.
No Novo Testamento, vamos encontrar tanto Jesus quanto seus apóstolos vivenciando experiências sensitivas extraordinárias, muitas delas por iniciativas que fugiam ao controle deles.
Por mais que o evangelho seja inclusivo, ele é também seletivo e, portanto, de certo modo, excludente. A diferença consiste no fato de que, no evangelho, o discípulo é estimulado a uma experiência de conversão, um encontro com Deus e desse encontro, a um retorno para viver a comunhão numa comunidade de fé cristã em serviço ao mundo – neste caso, confluem-se espiritualidade e missão. A experiência de conversão do discípulo de Jesus Cristo desemboca numa espiritualidade íntima e pessoal, e ao mesmo tempo, comunitária e universal.
No evangelho ensinado por Jesus, oramos ao Pai nosso que está nos céus – espiritualidade transcendente. E, enquanto se busca ao Pai na transcendência, deve-se buscá-lo na primeira pessoa do plural – O Pai é nosso - É Pai da comunidade e na comunidade. É também, a oração do pão nosso de cada dia.
Na Oração Dominical, espiritualidade e missão são manifestações transcendentes inseridas na realidade do cotidiano.
Início esta parte com uma afirmação de Rodolfo Otto:
“Os elementos não-racionais que permanecem vivos numa religião preservam-na da degeneração em racionalismo. Os elementos racionais que nela são abundantemente saturados, preservam-na de cair no fanatismo ou no misticismo ou de nelas permanecer; e elevam-na ao nível de religião qualitativamente superior, culta, religião da humanidade. A presença desses dois elementos e sua harmonia, estabelecem um critério para medir a superioridade de uma religião...”
Baseado neste critério, Otto descreve o cristianismo como religião superior às demais religiões, considerando ainda, que o cristianismo toma para si, uma forma do clássico e nobre.
Diante das duas perspectivas qual a fé geradora de uma espiritualidade capaz de promover uma missão conseqüente?
1. FÉ TRANSCENDENTE, detectada no mundo dos sentimentos e decodificada, apenas por analogia, através de categorias racionais.
Aqui a fé deve ser entendida como experiência a prior, anterior a outras formas de expressão cognitiva, sejam elas: culturais, políticas, econômicas ou sociais. A crença inabalável, a convicção daquilo que não se vê. O conhecimento e confiança no Inominável, Indescritível naquele que é verdadeiramente o SER. Na teologia cristã este conhecimento é denominado de revelação - ato exclusivo da parte de Deus em se fazer conhecido para quem Ele quis, por Si mesmo, se manifestar. O Antigo Testamento está repleto de eventos com a natureza do que estamos falando. É só lembrarmos de Abraão, Moisés, Isaías. Os relatos sobre as experiências destes três personagens, mostram-nos a revelação de Deus de uma forma sobrenatural e aceita somente na esfera do sentimento da fé mística. Especialmente Paulo faz referência ao que ele denomina de "mistério" não concedido a outras gerações, mas a ele, "o menor de todos os santos" .... "foi-me dado conhecer o mistério da multiforme sabedoria de Deus" (Ef 3.1-13).
Jesus disse a Tomé: "Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram e creram".
Paulo diz, simplesmente: "Abraão creu e isso lhe foi imputado como justiça..".
O escritor da carta aos Hebreus diz: "A fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se vêem (...) Ora, sem fé é impossível agradar a Deus; porque é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe, e que é galardoador dos que o buscam." (Hb 11.1,6).
Referimo-nos a uma qualidade do sentimento humano que é sensibilizado e movido em direção a Deus, mesmo antes de quaisquer manifestações espetaculares. Como exemplo, poderíamos lembrar de Abraão, o pai da fé. Sobre ele, o apóstolo Paulo comenta:
"E recebeu o sinal da circuncisão, selo da justiça da fé que teve quando ainda não era circuncidado, para que fosse pai de todos os que crêem, estando eles na incircuncisão, a fim de que a justiça lhes seja imputada, bem como fosse pai dos circuncisos, dos que não somente são da circuncisão, mas também andam nas pisadas daquela fé que teve nosso pai Abraão, antes de ser circuncidado." (Ro 4.11,12).
Paulo está falando de uma confiança em Deus, que nasce em Abraão, antes de qualquer resultado que a sua fé pudesse manifestar. No Antigo Testamento a expressão dessa fé se dá como resultado da crença na Aliança de Deus com pessoas ou com o Seu povo. Assim, vários sinais e milagres se manifestam como confirmação da fé, seja para uma missão específica de alguém, seja para confirmação do poder de Deus. Todavia, estamos identificando aqui, a fé dentro do campo do sentimento humano, que encontra significado, simplesmente na crença, na confiança total e absoluta em Deus. Fé, que pode ser explicada pela tentativa de aproximações analógicas, mas jamais, açambarcada por meras definições. Foi dessa maneira que Jesus procurou decodificar para Nicodemos o mundo espiritual, e mesmo assim, Nicodemos não o entendeu. Jesus ironizou: "Se vos falei de coisas terrestres, e não credes, como crereis, se vos falar das celestiais? (Jo 3.12).
Paulo fala de um conhecimento não decodificado "naturalmente", refere-se a coisas que olhos não viram, ouvidos não ouviram, nem jamais penetrou o conhecimento racional (I Co. 2.8-9). Ele afirma sobre coisas que são discernidas com um critério espiritual e por pessoas espirituais. Aqui a espiritualidade assume um papel místico, sobrenatural, transcendente.
2. FÉ COMO CAPACIDADE SOBRE-HUMANA para realização de fenômenos sobrenaturais
Especialmente, nos quatro evangelistas do Novo Testamento encontramos registros sobre a fé na perspectiva da realização de proezas e milagres inusitados. Tudo indica, que os narradores das histórias dos milagres de Jesus tinham em mente, a tentativa de fazer com que as pessoas acreditassem na missão de Jesus Cristo. João, referindo-se aos registros em seu livro diz: "estes, porém, estão escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome.(Jo 20.31).
De um lado, podemos observar a intenção dos narradores no conjunto geral de seus documentos: uma tentativa de sistematização inteligente, racional da fé. Sobre isto falaremos mais adiante. De outro lado, podemos olhar para as narrativas observando a atitude dos personagens de cada história. Aí vamos encontrar peças, cuja ênfase, está na fé da pessoa doente, fé daqueles que cercavam o Senhor Jesus (Mt 8:10; Mc 2:5; 5:34; 10:52); ou, na falta de fé, que limitavam a intensidade dos milagres: "E não podia fazer ali nenhum milagre, a não ser curar alguns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos. E admirou-se da incredulidade deles. Em seguida percorria as aldeias circunvizinhas, ensinando." (Mc 6:5,6).
A fé chega a ser mensurável. Encontramos no Novo Testamento expressões como: "grande é a tua fé", ou: "Fé do tamanho de um grão de mostarda", ou ainda: "...homens de pequena fé". Nestes casos, a fé se apresenta como um testemunho de que as pessoas estão, potencialmente - às vezes mais, às vezes, menos - abertas às possibilidades das coisas que Deus pode realizar, através de suas vidas.
Neste ponto poderíamos dizer que a espiritualidade se caracteriza pela capacidade individual ou coletiva de se realizar “os impossíveis” aos olhos da grande maioria.
4. Fé expressa num conjunto de doutrinas e confissões.
As narrativas do Novo Testamento são, em geral, uma tentativa de convencer pelo argumento inteligente, que Jesus Cristo é o Salvador, o Messias enviado por Deus. As cartas paulinas, especialmente as doutrinárias, são elaborações sistematizadas, racionais, que pretendem dar à experiência cristã transcendente, um conteúdo prático e lógico, histórico, tangível e decodificável, mesmo que, por analogias, que apenas nos aproximam das realidades espirituais mais profundas. Assim, nessa tentativa de elaboração da prática da fé e de sua sistematização vão surgindo as confissões e declarações de fé no mundo cristão. Um jeito fascinante de não permitir, que a experiência sensitiva conduza os cristãos a um espiritualismo individualista, fanático e desconectado das realidades da vida presente. A fé neste aspecto deve ser entendida como balizamento da conduta moral, ética e confessional da comunidade cristã.
Contudo, devemos reconhecer também, que a partir da fé confessional, os divisores de águas foram se estabelecendo no mundo cristão. De inicio eram apenas testemunhos dos novos catecúmenos, que pelo arrependimento e fé, confissão de seus pecados e engajamento na Comunidade de Jesus Cristo, confessavam aos "de fora" a sua fidelidade ao Senhor Jesus Cristo ressuscitado. Depois foram surgindo as confissões para estabelecer linhas demarcatórias, também, dentro do cristianismo. As confissões mais ecumênicas ainda são: o Credo Apostólico, o Credo Niceno, e o Atasasiano, este, um símbolo latino atribuído ao bispo Atanásio de Alexandria.
Com a Reforma Protestante essas confissões passaram a ser basicamente um tratado teológico e doutrinário, e não mais apenas um "hino" confessional usado na liturgia. A Dieta de Augsburgo em 1530 ilustra esse novo momento confessional da igreja cristã. Um outro símbolo desse discurso confessional de teor teológico aparece no ambiente evangelical, através do Pacto de Lausanne - Suíça; 1974. A diferença é que no Pacto de Lausanne surge também um teor estratégico e ético da missão da igreja no mundo.
Bem, de fato, estamos apenas registrando que a fé assume, neste sentido, um caráter confessional - uma interpretação decodificável e inteligente, a fim de:
1. Inicialmente, com a intencionalidade de testemunhar e explicitar a fé no Evangelho de Jesus Cristo, para os de "fora"
2. Num segundo momento para posicionar-se diante de ameaças doutrinárias - às vezes internas, outras vezes externas. Uma espécie de busca da unidade pela verdade.
3. E, por último, com o propósito de "discernir os tempos" e praticar com fidelidade e eficácia a missão da Igreja no mundo.
Neste ponto, espero não confundirmos o que estamos denominando de fé confessional - conjunto de ensinamento capaz de discernir e explicitar por analogia inteligente os fenômenos da revelação; com o neo-fundamentalismo doutrinário prepotente, desumano, exclusivista e criminoso, que suprime o dinamismo da "confissão de fé" como forma de responder adequadamente aos desafios éticos e sociais de cada nova geração.
3. Fé como resposta ética - resultado da reconciliação com Deus
Nas Escrituras a fé é também apresentada como uma resposta humana que testemunha, pratica as boas obras do Reino de Deus e resiste a toda espécie de maldade. A fé, nessa perspectiva, não é uma mediadora entre Deus e as pessoas. O mediador é Deus/Cristo, em si mesmo e não a nossa fé. Assim, constatamos que há expressões de fé fora dessa perspectiva relacional com Deus. Ou seja, a ausência de uma resposta ética denuncia um tipo de crença, que não se enquadra dentro do que a Bíblia reconhece como fé cristã. Os demônios, por exemplo, crêem e, ao mesmo tempo, se rebelam contra Deus (Tg 2.19). Nesse sentido podemos observar que os demônios reconhecem que Deus é absolutamente melhor, e mesmo assim, não se submetem nem assimilam a bondade de Deus. Já para aqueles que são reconciliados, a fé passa a ser uma conseqüência espiritual, traduzindo-se dessa maneira numa missão de amor ao próximo. Escrevendo às igrejas do I Século, Paulo usa expressões como:
· Por isso também eu, tendo ouvido falar da fé que entre vós há no Senhor Jesus e do vosso amor para com todos os santos,... Ef 1.15
· Primeiramente dou graças ao meu Deus, mediante Jesus Cristo, por todos vós, porque em todo o mundo é anunciada a vossa fé. Ro 1.8
· ...desde que ouvimos falar da vossa fé em Cristo Jesus, e do amor que tendes a todos os santos,... (Cl 1.4).
Não é possível separarmos a fé como imagem pública (comportamento, caráter); da fé enquanto ato de misericórdia e compaixão pelo próximo. Até porque a imagem pública da igreja é também resultante de atos de sua compaixão. Mas aqui, a fé deve ser entendida como evento atuante no caráter, integridade, atitudes, comportamento - um modo de ser próprio do discípulo de Jesus Cristo: "Vós sois a luz do mundo..."; "Vós sois o sal da terra" (Mt 5.13,14). Desse modo a fé concede a comunidade cristã um caráter distintivo: "para que vos torneis irrepreensíveis e sinceros, filhos de Deus imaculados no meio de uma geração corrupta e perversa, entre a qual resplandeceis como luminares no mundo," (Fl 2.15)
C.A. Anderson Scott (Christianity According to St. Paul, 1972, P.111) diz que: “desde o momento em que a fé adquiriu caráter ativo idealmente se operou ali uma transformação da perspectiva ética”. Portanto, olhando com esse enfoque, podemos afirmar que a fé é uma resposta (conseqüência) ética, à graça recebida de Deus. “Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens, educando-nos para que, renegadas as paixões mundanas, vivamos, no presente século, sensata, justa e piedosamente,...” As palavras deste texto dão a idéia de salvação como um ato ou processo de reeducação da nova criatura em Cristo. A Bíblia enfoca este aspecto da fé como sendo o processo de formação de Cristo em nós. Uma espécie de novo "ethos" transplantado pelo Espírito para o espírito humano. Deus transplanta o coração de pedra, insensível, desumano, por um coração de carne - humano sensível, fiel, confiável (Ez. 18.31; 36.26; Jr. 31.31-34).
Esse novo modo de ser dos discípulos de Jesus provoca reações - às vezes de aceitação, outras vezes de repúdio e perseguição. A história está repleta de casos de hostilidade e crueldade contra os cristãos:
Pedro escrevendo aos cristãos da Ásia Menor, estimula-os a confirmarem a fé, a despeito de tribulações (1Pe 1.6,7).
Paulo escrevendo aos Tessalonicenses comenta sobre essa fé constante, a despeito de perseguições e aflições: "De maneira que nós mesmos nos gloriamos de vós nas igrejas de Deus por causa da vossa constância e fé em todas as perseguições e aflições que suportais;..." (2Ts 1.4)
No livro de Apocalipse encontramos registros sobre aqueles que sofreram por conta do testemunho de sua fé: "...conservas o meu nome e não negaste a minha fé..." Ap 2.13. ou ainda: "...e por causa do testemunho que deram e, mesmo em face da morte, não amaram a própria vida." Ap 12.11).
A igreja de Jesus Cristo é formada por esses indivíduos, que buscam uma fé, comunitária, partilhada. Uma fé marcada por obras de caridade e justiça. Na ótica de Tiago as obras se confundem com a fé: "...mostra-me a tua fé sem as obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras...". Para ele uma comunidade que discrimina o pobre e não cuida dos necessitados deve ser submetida a avaliação da fé (Tg 2.1-11). E, arremata o seu argumento com uma pergunta: "...se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras? Pode, acaso, semelhante fé salvá-lo?" (Tg 2.14).
Ruth Tucker, em sua historiografia sobre o cristianismo, faz referência a igreja dos três primeiros séculos, sendo percebida, até pelos seus opositores e críticos, como uma comunidade que acolhia pessoas inúteis, desprezíveis, escravos, mulheres, pobres e crianças. O imperador Juliano chegou a comentar, que eles (os cristãos) cuidavam "não apenas de seus próprios pobres, mas também dos nossos" (Tucker 1986; 26,27).
Portanto, há duas dimensões da fé como resposta ética.
1) Uma espiritual: que se inicia na experiência intima, pessoal, privada - "entra no teu quarto fecha a porta e fala ao teu Pai.... e teu Pai que vê em secreto te recompensará"; mas desemboca no serviço.
2) É, portanto, missionária: Fé que se expressa através de uma espiritualidade comunitária, pública, sócio-política, inclusiva - "...Assim brilhe a vossa luz diante dos homens...". Esta última dimensão é marcada por práticas de justiça social, implica no reconhecimento e admiração de alguns; outras vezes, no repúdio e perseguição de outros.
Observando o testemunho da Igreja Primitiva podemos afirmar que era uma comunidade batizada por uma missão espiritual e aspergida por uma espiritualidade missionária.
3. O AMOR COMO EIXO E BALIZAMENTO de Santidade e Serviço
Nas Escrituras, o povo de Deus é uma comunidade distintiva, santa, vocacionada para amar. A Igreja é composta pelos "filhos da luz" que, por essa condição "andam na luz" e amam a luz (Ef 5.8). Há outros que amam mais as trevas do que a luz (Jo 3.19). É possível se identificar na linguagem dos apóstolos o uso da primeira pessoa do plural (nós), às vezes segunda pessoa do plural (vós), para fazer referência a essa comunidade escolhida por Deus, a fim de manifestar ao mundo a multiforme sabedoria de Deus (Ef 2.2,3).
Deus convoca a igreja, não para privilegiar alguns, mas para abençoar a muitos. O propósito inclusivista não descarta uma atuação seletiva. No Novo Testamento fica evidente a existência de uma comunidade universal, que tem respondido positivamente ao ato redentor do amor de Deus, devendo diferenciar-se, portanto de outros que Paulo denomina de: "filhos da desobediência" (Ef 2.2,3) e continua: "Mas Deus sendo rico em misericórdia por causa do grande amor com que nos amou..." (Ef 2.5). E, ainda afirma: "...Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo Jesus morrido por nós, sendo nós ainda pecadores" (Ro 5.8).
Pedro usa a segunda pessoa do plural: "vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa..." (I Pe 2.9). João é mais enfático quando descreve o amor entre Deus e a Igreja: "Nós amamos porque Ele nos amou primeiro" (I Jo 4.19). Afinal, a Bíblia se resume nessa fascinante iniciativa de Deus de salvar a humanidade, através do Seu amor.
Estamos reconhecendo que Deus ama a todos, mas alguns, como refluxos desse amor vivenciam o mandamento de amar uns aos outros.
Entendendo a igreja como comunidade de Jesus Cristo, como povo alcançado pela bondade de Deus, e não apenas como estrutura institucionalizada as possibilidades da missão tendem a ser ampliadas. As instituições são limitadas, não possuem neurônios, sentimentos; logo, não são obrigatoriamente capazes de amar, e mesmo que, em dados momentos sejam úteis ao Reino de Deus, podem em outros momentos, prestar um desserviço ao Reino, dada a natureza institucional de existir para preservar-se a si mesma. Por isso, o amor deve ser o paradigma que não permite sacrificar as pessoas em beneficio da instituição -, seja pelo abandono ou proteção da instituição.
A igreja é a expressão desse amor. E como o expressa? No Novo Testamento a manifestação do amor acontece pela igreja ser, em si mesma, diaconia. Como expressa o Bispo anglicano Sebastião G. Soares: "a igreja de Jesus Cristo ou é diaconia, ou não é Igreja de Jesus Cristo". A figura de servo atribuída a Jesus faz mais sentido como "diácono da humanidade", do que escravo. Pensando dessa maneira nos deparamos com diaconia como missão essencial do povo de Deus. No Sermão do Monte, a espiritualidade não se restringe no ato de se levar oferta ao altar. A missão de se buscar o outro para o espaço da reconciliação, ambiente da paz e partilha do pão é devoção e espiritualidade.
Não seria verdade afirmar que espiritualidade é o ato de fazer desdobrar-se em amor ao próximo a experiência transcendente, enquanto missão é a tarefa de transformar num culto a Deus a ação sócio-política em favor da vida?
3.1. A IGREJA - UMA COUMUIDADE DE AMOR – a marca da santidade
Desse modo o amor é a marca com a qual deve ser identificada a comunidade de Jesus Cristo. Para Francis Schaeffer o amor é uma espécie de emblema, uma marca, um selo que o Espírito confere para rotular o cristão, em todos os tempos e em todos os lugares (1970;5).
Os discípulos de Jesus Cristo são identificados como tais, pela evidência do amor: "Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos; se tiverdes amor uns pelos outros" (Jo 13.35). Na ótica de João amamos a Deus, quando de fato, amamos aquele a quem vemos (aquele a quem vemos - possivelmente refere-se ao irmão na fé). (I Jo 4.20,21). A necessidade de se praticar o amor existe em forma de mandamento, e sendo mandamento, existe para ser obedecido. Mas essa constatação não implica que o amor deva ser praticado por imposição, senão apenas, para enfatizar que não é um mero sentimento. Pois, amar é também um caminho, é o jeito de ser, o modus vivendis do cristão. Logo, a Igreja ama como refluxo do amor recebido de Deus. Amar deve fazer parte da pulsação natural da Igreja, a expressão da maturidade cristã, o mais evidente referencial de espiritualidade. Uma vez que amamos a Deus, naturalmente obedecemos ao Seu mandamento de amar, e por desfrutarmos de Sua natureza, amamos incondicionalmente como conseqüência do ser cristão. Assim como uma planta, naturalmente produz frutos da sua espécie o cristão produz o fruto do Espírito - "Amor, paz, alegria, bondade, fidelidade, mansidão..." (Gl 5.20-22)
Se desfrutarmos de manifestações sobrenaturais na esfera dos sentimentos, mas se, no entanto, não estivermos revestidos de amor - Paulo afirma - nada disso me aproveitará. Ou, se possuirmos conhecimento misterioso e científico, mas se da mesma maneira, não tivermos a prática do amor - Paulo outra vez diz - nada disso adianta. Na ótica de Paulo pode-se até fazer obras filantrópicas sacrificiais, mas se o amor não for o fundamento e a motivação de tais práticas; de nada vai adiantar (I Co 13.1-3).
O princípio da unidade do povo de Deus está fundamentado no amor. Assim sendo, a Igreja deve ser internamente a comunidade da comunhão, afetividade, fraternidade, o espaço de pessoas acolhedoras, misericordiosas; a expressão mais explícita de um ambiente e ambiência onde as pessoas possam se sentir amadas por Deus, tocadas por Ele, através da Sua encarnação no Corpo de Cristo. Testemunhar do amor de Deus ao mundo depende da unidade, em amor, da Igreja. Jesus disse: "Que eles sejam um para que o mundo saiba que tu me enviaste..." (Jo 17.23,24).
3.2. A IGREJA – UMA COMUNIDADE DE SERVIÇO – a marca da missão
Sendo a Igreja uma comunidade de amor, como conseqüência de sua própria natureza seria contraditório viver para dentro de si mesma e não para os "de fora". A igreja deve manter como diferencial a característica ser uma sociedade em que os associados vivem a serviço dos não-associados. Até porque a lógica de quem ama é viver para o bem do outro e não de si mesmo. A unidade da Igreja como expressão interna do amor, não deve ser praticada de forma excludente. O novo mandamento de amor aos irmãos não anula o antigo mandamento de se amar a Deus e ao próximo. Sobre isto observemos o que Jesus disse:
"Eu, porém, vos digo: Amai aos vossos inimigos, e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai que está nos céus; porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e injustos. Pois, se amardes aos que vos amam, que recompensa tereis? não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis demais? não fazem os gentios também o mesmo? Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celestial". (Mt 5.44-48).
A unidade é a manifestação do testemunho de amor entre os cristãos, a despeito de suas diferenças e diversidade, a fim de que, os "de fora" creiam que Jesus Cristo é o Messias enviado por Deus. O amor na igreja fortalece a comunhão interna do Corpo de Cristo, ao mesmo tempo em que, libera a igreja para praticar obras de misericórdia e justiça em favor do próximo, com o fim de revelar ao mundo a perfeição de Deus, no Seu tratamento com as pessoas.
Uma espiritualidade fundamentada no amor aprecia e deslumbra-se com todas as manifestações de Deus. Uma espiritualidade aspergida de amor tem sensibilidade aguçada para todos os dons da vida; vive o exercício permanente de contemplação da natureza nos seus mais variados cenários. Quem assim ama vive em missão permanente. Missão inteligente com vistas à preservação de todo o ecossistema, busca de vida abundante para todas as pessoas e profundidade harmoniosa nas relações com Deus e com toda a natureza.
quarta-feira, 9 de junho de 2010
O homem como prisioneiro no labirinto das estruturas conceituais
(Extraído do livro: SILVEIRA, José de Deus Luongo da. As várias faces do Direito: uma crítica ao discurso jurídico tradicional. Londrina, Paraná: Universidade Estadual de Londrina, 2009).
O problema do significado da vida e do mundo não se apresenta à consciência como estruturas soltas e, sim, inseridas dentro de um contexto relacional[1] que se articula para a formação do universo interior e exterior no continuum das relações de tempo e espaço. A construção dessas realidades significativas não é exatamente a tradução do que está aí, presente nas coisas, mas é aquilo que para cada um detém determinado sentido. Assim, as realidades (ens realis, ens rationis) possuem atualidade (temporalidade para a consciência) mediante o processo seletivo da ação intencional, gerando adaptação ou alienação.
Os signos e valores individuais ou sociais dão sentido à vida das pessoas e se constituem num corpo de verdades que determinam o seu agir, a sua postura frente ao mundo. Não podemos viver como homens sem raciocinar, e a verdade de cada um induz a uma visão de mundo[2]. São lentes, pelas quais filtramos toda a compreensão da realidade. O próprio pensamento de identidade pessoal nada mais é do que uma síntese dinâmica que agrega os diferentes aspectos mentais, formando a consciência do eu, como uma unidade própria que se projeta na dimensão espácio-temporal.
Em termos gerais, há diferentes modelos de subjetividade: o conceito de identidade pessoal como o resultado de todas as experiências passadas; a consciência moral calcada em juízos de valores; o sujeito epistemológico responsável pela formação das estruturas cognitivas e a dimensão social, manifesta pela consciência política. Esses modelos se articulam formando um núcleo geral de conceitos que se intercomplementam num todo harmônico e pleno de significado. Quando isso acontece, se estabelece um elo de coerência entre as várias percepções da realidade e o eu realiza uma síntese dinâmica e satisfatória. Quando o sujeito deixa de realizar essa integração, surgem as contradições internas, como o resultado de uma visão fragmentada do mundo. O papel do sujeito nessa re/construção da realidade vai determinar a interação mental e os diferentes graus de adaptação social: “cooperação, competição, conflito, acomodação e assimilação[3]”. O perigo reside na cristalização de certas atitudes, na formação de estereótipos, isto é, uma conduta calcada em reproduções falsas, “... idéias ou imagens não logicamente fundamentadas[4]”. Via de regra, essas representações mentais são responsáveis por atitudes de cunho fundamentalista que geram exclusivismos no campo da religião, da política, do direito etc.
É impossível dizer quão longe o homem pode levar as suas próprias convicções. No testemunho da história, muitos mataram e morreram pelo que acreditavam serem verdades. Nietzsche, no entanto, rompe com a idéia de se imolar pela verdade, afirmando: “Morrer pela verdade. - Não nos deixaríamos queimar por nossas opiniões: não estamos tão seguros delas. Mas, talvez, por podermos ter nossas opiniões e podermos mudá-las[5]”.
Com a radicalização de suas idéias, o homem torna-se escravo do seu próprio discurso e dele se convence, tão sinceramente, que é capaz de dedicar uma vida inteira à consecução de suas idéias. A compreensão maniqueísta de dividir as coisas entre verdadeiro/falso ainda faz parte do cotidiano das pessoas, cria motivações, projetos de vida e uma decodificação de toda a realidade percebida. São juízos de valores que estão presentes nas mais diferentes manifestações da existência humana.
O homem está preso no labirinto de suas estruturas conceituais e nessa construção ideológica investe a sua própria felicidade. Todo o processo de criação de estruturas conceituais que refletem a realidade dos valores e interesses, como a finalidade da existência, conduta legal etc., existe, porque o homem é um ser que produz significações. Segundo Heidegger:
“Somente quando se encontrou a palavra para a coisa, é esta uma coisa; somente então é, uma vez que a palavra é o que proporciona o ser à coisa (...) Não falamos sobre aquilo que vemos, mas sim o contrário; vemos o que se fala sobre as coisas[6]”.
Também Voloshinov chega a afirmar que “sem signo não há ideologia[7]” e toda a ideologia é uma visão parcial da humanidade. Cria-se, assim, o que os lingüistas chamam de campos de sentido porque traduzem a idéia de consciência individual, social e histórica. São referências que mostram que
“Pessoas em todos os lugares continuam a inventar maneiras significativas de viver tomando a cultura familiar como base, isto é, a língua, a religião, os estilos de interação social, a comida, e assim por diante[8]”.
Essas realidades formam o pano de fundo dos pensamentos e se constituem numa prisão sígnica[9]. O homem, sendo um ser de linguagem, não tem saída, está preso no mundo dos signos e também é um signo, porque produz relações de significação. A consciência de si mesmo passa a ser a internalização de significados ou, mais adequadamente, um inter-relacionamento contínuo de significados. Há significados de passado, apreendidos; significados em apreensão e passíveis de apreensão, o que é expresso na voz de Alberto Caeiro (pseudônimo de Fernando Pessoa) como: “tristes de nós que trazemos a alma vestida!”[10].
Cada ser humano possui a sua própria visão de mundo e esse referencial é tão importante que realiza a integração das várias funções do eu - produzindo um universo de significações. A perda desse quadro de referências corresponde à perda da auto-identidade, à perda da dimensão que o eu tem desses signos e de si mesmo, enquanto um ser para um processo dinâmico de recriação.
O referencial que caracteriza o ser de linguagem é tão importante quanto as demais manifestações da vida racional, ele traduz o mundo e aprende mediante uma relação sincrônica e de dependência entre as estruturas conceituais e os novos aprendizados, os quais percorrem um caminho determinado, de reafirmação ou negação dos pressupostos já existentes. Se estamos seguros do lugar que ocupamos no contexto onde estamos inseridos, mergulhando no passado, trazemos à tela da memória a nossa própria história. Isto só é possível, porque de alguma forma se dá o processo de revelação e verificação do significado da nossa experiência pessoal. E essas experiências comuns de um lado aprisionam a realidade em relações sígnicas e de outro expressam a dimensão de transcendência, de processo de reconstrução das idéias. É a experiência de estar incluso, literalmente, numa relação ontológica, “idéias que não são auto-representações mas signos daquilo que é objetivamente outro que não a idéia no seu ser como representação privada[11]”.
No des/modelar para modelar de novo, mesmo que o homem migre para um novo paradigma, libertar-se-á de uma estrutura-modelo para se tornar cativo de outra. Não há saída, não há forma de romper com o passado sem se abrigar em outras servidões. As nossas idéias nos definem, nos transformam e a luta pelo novo, pela mudança, é continuidade enquanto somos capturados em novos vínculos. Contudo, se é impossível a existência humana sem esse suporte, tal não pode ser absolutizado com a promoção da cultura da intolerância, a ponto de se tornar difícil a convivência com outras percepções da realidade. Na sociedade pós-moderna, a cultura da intolerância está assumindo proporções perigosas; o divergente/diferente não só não é aceito, como se cria uma série de obstáculos à sua existência no convívio social.
As próprias características da cultura ocidental, em alguns casos, favorecem certos exclusivismos, na medida em que o homem ocidental é preparado desde criança para encontrar uma única resposta certa (verdadeira) para tudo, o que na realidade, parece não existir. Privilegia-se um referencial teórico-prático, um padrão de racionalidade técnica, conduzindo à cultura hegemônica e às culturas subalternas.
O medo do diferente (a heterofobia) e os estereótipos criam uma forma de violência simbólica que se concretiza na violência física contida nas diversas formas: espancamento e morte de homossexuais, extermínio de crianças de rua (Candelária), extermínio de mendigos da Praça da Sé, em São Paulo, as mortes entre membros de torcidas de times de futebol, as mortes entre membros de gangues organizadas, o fundamentalismo religioso islâmico, judaico e cristão, o fundamentalismo político norte-americano, a xenofobia de alguns países europeus, etc.
O etnocentrismo, a racização repressiva da assimilação dos outros a si mesmo, todas essas formas de aculturação violenta tornam muito difícil o corolário de um horizonte aberto, capaz de conter outras verdades, ou a idéia de verdade-processo, em que não há uma única resposta certa para a realidade.
É de se esperar que o moderno diálogo intercultural e inter-religioso, com sua abertura para os argumentos da tolerância discursiva, seja o caminho mais curto para a INCLUSIVIDADE. Del Vecchio vê no direito um instrumento para a aceitação do outro:
“O Direito, em especial, implica sempre o reconhecimento expresso da pessoa do ‘outro’; é, por essência, ‘metaegoista’ e as instituições políticas não são máquinas, ou instrumentos exclusivamente mecânicos das coações impostas aos homens, que só devido a estas evitariam a auto-exterminação da espécie: mas são antes produtos espontâneos do espírito humano[12]”.
De alguma forma, sempre esteve presente a idéia de que a resposta para a cultura da intolerância encontrava-se na alteridade, no olhar do outro, onde está sempre a referência da nossa identidade[13]. Para Levinas, “[...] o Outro não é o distante, o estranho, e muito menos o impessoal. O Outro é universo epifânico e dialogal[14]”. Construímos a nossa subjetividade porque existe o outro, faça ele parte do nosso grupo ou não. Para Freire, “a subjetividade, portanto, não é interioridade, mas um si construído a partir de fora, de outrem, pura defecção de um eu que se perde a si mesmo[15]”. O olhar do outro estabelece a nossa visibilidade, pode ser que ele às vezes nos desinstale, mas sempre nos recupera de nós mesmos, dentro de “um jogo de possível captura recíproca[16]”. Por outro lado, a escassez do outro, a sua desventura, o seu sofrimento nos incomoda. Boff enfatiza de que
“O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, de preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro[17]”.
O caminho da diversidade na unidade, do pluralismo, da inclusividade, parece ser a única resposta aceitável. Saber conviver com pontos de vista discordantes - o embate das idéias - aprofunda ou derriba as nossas certezas parciais, provisórias e precárias; isso só é possível quando não nos submetemos ao germe da radicalização.
____________
[1] Merleau-Ponty, apud Bonomi, p. 9.
[2] Weltanschaung.
[3] Carvalho, 1976, p. 49.
[4] Id., p. 46.
[5] Nietzsche apud Candido, p. 1.
[6] Apud Streck, p. 175.
[7] Apud Eagleton, p. 172.
[8] Rector, p. 93.
[9] Para Deely: “Ser um signo é uma forma de prisão a um outro, ao significado, o objeto que o signo não é mais que, todavia, representa e substitui.” (p. 54).
[10] Pessoa , p. 64.
[11] Deely, p. 29.
[12] Vecchio, p. 314.
[13] Souza, 2002, p. 51.
[14] Levinas, cap. XVIII.
[15] Freire, p. 85.
[16]Souza, 2002, p. 51.
[17] Boff, p. 33.
BIBLIOGRAFIA
BOFF, Leonardo. Saber Cuidar: Ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999.
BONOMI, Andrea. Fenomenologia e Estruturalismo. São Paulo: Perspectiva, 1974.CARVALHO, Irene Mello. Introdução à Psicologia das Relações Humanas. Rio de Janeiro: RGV, 1976.
DEELY, John. Semiótica Básica. São Paulo: Ática, 1990.
EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: UNESP., 1997.
PESSOA, Fernando. O Guardador de Rebanhos. Poemas. 7 ed., Rio Janeiro: 1995
RECTOR, Mônica; NEIVA, Eduardo. Comunicação na era da pós-Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1997.
SOUZA, Regina Maria. O olhar e esses anormais: notas um tanto desencontradas sobre o racismo em nós. Campinas: Educação e Sociedade n 79, CEDES, 2002.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica em Crise. Porto Alegre: Livraria e Editora do Advogado, 1999.
Ref. Eletrônica:
Candido. A Crise dos Paradigmas Modernos. 1995, p. 1. Disponível em:
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